sexta-feira, 30 de novembro de 2012

Decisões morais - Calligaris

CONTARDO CALLIGARIS

Decisões morais

Você está na posição ideal para pisar fundo e atropelar os dois assaltantes; você vai acelerar?

É uma da tarde, e você dirige uma caminhonete pelas ruas de São Paulo. De repente, você esbarra num carro parado; ao lado dele, dois motoqueiros; um dos dois enfia seu braço armado pelo vidro do motorista do carro; o assaltante ameaça e grita, ele pode atirar a qualquer momento, quer seja porque não estão lhe entregando o que ele pediu, quer seja porque não gostou do que lhe foi entregue, quer seja porque, simplesmente, ele está nervoso e a fim de matar.

Atrás de você e da cena do assalto, só buzinam os mais afastados, que não enxergam o que está acontecendo. Os mais próximos ficam paralisados, divididos entre o medo e a vergonha por não reagirem e por serem cidadãos de um lugar onde isso é possível e corriqueiro.

Você está na posição ideal para pisar fundo e atropelar os dois meliantes, antes que atirem ou que fujam, ganhando, mais uma vez, dos assaltados e de todos nós.

Você não vai acelerar. É por medo de que o assaltante evite seu carro e acerte você com um tiro? É por preguiça de se envolver com polícia e investigação? Ou receia que cúmplices e familiares dos criminosos se vinguem?

Tudo bem, imaginemos que seja noite funda: não há ninguém, só os assaltantes, os assaltados e você. Ninguém verá nada. Ainda assim, você não vai acelerar?

Talvez prevaleça em você a inibição que paralisa a muitos na hora de machucar um semelhante, mesmo odioso. Ou talvez você queira agir "segundo a lei". Mas você sabe que a lei contempla e admite a "legítima defesa de terceiro"? Tudo bem, sua única obrigação jurídica é acionar a autoridade competente: fique no seu carro e ligue para a PM, uma viatura chegará a tempo para interromper o assalto e proteger os assaltados -não é verdade?

Ok, você hesitou demais, um dos assaltados acaba de ser baleado. Juridicamente, você não tem responsabilidade por não ter agido. A lei não exige de ninguém que seja herói. Mas será que isso é verdade também da moral? Você vai dormir tranquilo?

Outro dilema. Agora, imagine que, exatamente na mesma cena, você seja o assaltado. A caminhonete do dilema anterior apareceu, atropelou os assaltantes e sumiu. O bandido para quem você entregou sua bolsa está no asfalto, numa poça de sangue. Você faz o quê? Chama uma ambulância e espera para dar depoimento? Ou recupera o que lhe foi roubado e vai embora?

Já escrevi aqui mais de uma vez: admiro a teoria dos estágios do pensamento moral, de Lawrence Kohlberg. Resumindo, com nosso exemplo: é inútil querer decidir se é mais moral jogar a caminhonete para cima dos ladrões ou se esconder atrás do volante.

O que importa é a razão de nossa escolha. Se decidirmos por medo da punição, por conformidade ou mesmo por respeito à lei, nossa conduta será moralmente medíocre. Se decidirmos segundo o que nos parece certo, em nosso foro íntimo, nossa conduta -seja ela qual for- será de uma qualidade moral superior.

Mais uma coisa: Kohlberg também mostrou que a gente não melhora moralmente à força de memorizar valores ou exemplos a seguir, mas destrinchando dilemas e ponderando como e por que agiríamos de uma maneira ou de outra.

Os dois dilemas que acabo de expor são extraídos de um filme excelente, que não me sai da cabeça, "Disparos", de Juliana Reis, em cartaz desde sexta passada.

"Disparos" acontece no Rio, embora seu roteiro seja, hoje, mais paulistano do que carioca. De qualquer forma, não perca o filme e não fuja do debate íntimo sobre o que você faria numa situação parecida (até porque as chances de viver uma situação parecida aumentam a cada dia).

O Senado acaba de incluir disciplinas de ética no currículo do ensino fundamental e médio. Espero que se evite a monumental estupidez de ensinar ética normativa, ou seja, de querer enfiar valores em nossas crianças -goela abaixo, como se fossem partículas consagradas.

Para crianças como para adultos, "aprender" ética significa aprimorar a disposição a pensar moralmente, ou seja, a capacidade de debater, em nosso foro íntimo, os enigmas complexos (e, muitas vezes, insolúveis) que a realidade nos apresenta. Como disse, essa disposição só melhora à força de encarar dilemas.

Sem esperar o mais que provável desastre do novo curso, podemos ir (e levar nossos adolescentes) ao cinema. "Disparos" é um filme perfeito para pesar a complexidade da vida urbana no Brasil, ou seja, para pensar o que significa sermos morais hoje, aqui, no lugar em que estamos vivendo.


quarta-feira, 28 de novembro de 2012

O pensar como doença - Safatle

Sem tempo, sem inspiração... um pouco mais de Safatle!


O pensar como doença



"O estado de reflexão é contra a natureza. O homem que medita é um animal depravado." Tais afirmações de Rousseau parecem servir de guia involuntário para setores hegemônicos da clínica do sofrimento psíquico.

Há anos, a filósofa francesa Joëlle Proust foi capaz de afirmar que o sofrimento psíquico não teria relações com a forma com que o paciente reflete sobre seus sintomas a partir de suas próprias convicções e motivações.

Com isso, ela apenas dava forma a um princípio que parece guiar dimensões maiores da psiquiatria contemporânea. Ou seja, tudo se passa como se não houvesse relações entre a maneira com que sofremos e a maneira com que pensamos e procuramos justificar nossas vidas a partir de valores e normas.

Essa é uma boa maneira de evitar o trabalho mais doloroso exigido pelo tratamento de modalidades de sofrimento psíquico, a saber, a crítica dos valores, normas e formas de pensar que constituem, tacitamente, nosso horizonte de uma vida bem-sucedida.

A fim de evitar tal trabalho crítico, que certamente é o que há de mais difícil, parece que nos tranquilizamos com ideias como as da professora Proust. Elas acabam por servir para fortalecer a crença de que só haveria cura lá onde abandonássemos o esforço de pensar sobre nós mesmos. No fundo, talvez porque ainda estejamos presos a resquícios deste antigo paralelismo que associava, por exemplo, a melancolia ao ato de "pensar demais".

Décadas atrás, François Truffaut fez um belo filme sobre uma sociedade no futuro onde a polícia queimava livros porque eles trariam infelicidade. Melhor seria garantir a felicidade social por meio de uma política de uso exaustivo de medicamentos.

Tal filme foi a metáfora perfeita para um fenômeno que o sociólogo Alain Ehrenberg chamou, décadas depois, de "uso cosmético" de antidepressivos e afins.

Por "uso cosmético" entendamos o uso de larga continuidade que acaba por visar conservar performances sociais bem avaliadas, evitando ao máximo a experiência com transtornos de humor. Ele é o resultado inevitável do modelo de medicação que impera atualmente. Trata-se de uma distorção daquilo que deveria ser a regra, a saber, o uso focal ligado exclusivamente a situações e momentos de crise aguda.

Tal uso focal procura apenas garantir as condições de possibilidade para que o verdadeiro tratamento ocorra. Um tratamento que poderá mostrar como, se é a reflexão que nos adoece , é ela também que nos cura.

VLADIMIR SAFATLE escreve às terças-feiras nesta coluna.

http://www1.folha.uol.com.br/colunas/vladimirsafatle/1191705-o-pensar-como-doenca.shtml

terça-feira, 20 de novembro de 2012

20 de novembro - Dia da consciência negra

Dia da consciência negra.
É bonito ver o tanto de gente que se diz negra numa data assim. Não sei se realmente se sentem com sangue negro correndo nas veias, se fazem porque é bonito, se realmente estão tocados pela luta.

É verdade que quase todo brasileiro tem sangue pelo menos um pouco negro. Mas ser negro hoje ainda é, infelizmente, muito diferente de ser brando. Ser mulher ainda é, mesmo com uma presidenta da República eleita por voto direto, muito diferente de ser homem. Não conheço as dores e as delícias de ser negra, mas conheço as dores e delícias de ser mulher, mesmo numa posição social confortável. Não é igual.

Ser politicamente correto hoje está quase no nível de livros de auto-ajuda, algo visto até como meio pejorativo... pois que se danem os que pensam assim. Os que acham legal fazer piadinhas preconceituosas, os que se acham melhores do que os outros, os que se acham engraçados, os que se acham mais amados por Deus, os que se sentem especiais, os que acham que não precisam de ninguém, os que se permitem pensamentos e ações homofóbicas, racistas e machistas, que se danem todos. Babacas.
Hoje não estou fofa. Aos que usam a desculpa esfarrapada e malvestida da liberdade de expressão para poder vomitar essas abobrinhas, que se esfolem. Ofender os outros, fazê-los se sentir mal, humilhá-los, agredi-los: esse direito você não tem. So, please, shut up.

Apenas um desabafo... na verdade queria escrever algo como o Safatle! Mas hoje não pude,então colo o texto dele abaixo!

http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/78968-correto-demais.shtml

VLADIMIR SAFATLE

Correto demais
Em Paris, neste final de semana, houve uma passeata contra o projeto do governo de permitir o casamento entre homossexuais. Depois de agressões a grupos feministas e a jornalistas, alguns manifestantes se voltaram contra a "ditadura do politicamente correto".

Há alguns meses, na época da Olimpíada, uma atleta grega foi suspensa da equipe de seu país por comentários racistas em sua conta do Facebook. À notícia na imprensa europeia, seguiam-se necessariamente centenas de posts denunciando a "ditadura do politicamente correto" que impedia a atleta de enunciar suas opiniões sobre a quantidade de imigrantes em seu país.

No Brasil, discussões sobre o conteúdo racista de um livro de Monteiro Lobato degeneraram, por sua vez, em denúncias violentas contra a mesma "ditadura do politicamente correto" que, ao que parece, deve ser o resultado de um grande complô mundial contra livres pensadores travestidos de atletas gregas, manifestantes que gostam de agredir feministas e defensores da clarividência política de Lobato.

Na verdade, por trás da defesa de tal modalidade de "livre expressão" há o desejo mal escondido de continuar repetindo os mesmos velhos preconceitos e a mesma violência contra os grupos vulneráveis de sempre.

Por trás da atitude do adolescente que parece se deleitar com a descoberta de que é capaz de enunciar, à mesa do jantar, comentários "chocantes" que fazem seus pais liberais revirarem-se, há a tentativa de travestir desprezo social com a maquiagem da revolta do homem comum contra a ditadura dos intelectuais. Não por acaso, essa era uma estratégia clássica para dar direito de cidade a comentários antissemitas.

No entanto, é bom lembrar que uma democracia sabe separar a opinião do preconceito. Uma opinião é aquilo que é, por definição, indiferente. Ela abre um espaço de indiferença a respeito de enunciados e discursos. Mas há enunciações que não podem ser recebidas em indiferença, já que trazem, atrás de si, as marcas da violência que produziram ao serem enunciados. Uma sociedade tem a obrigação moral de defender-se deles.

Colocar uma advertência em um livro por ter conteúdo que pode ser sentido por minorias raciais como violência, impedir que pessoas escarneçam de grupos socialmente vulneráveis é condição para um vínculo social mínimo.

Claro, tais pessoas que julgam normal fazer piadas com negros nunca mudarão de ideia. Mas elas devem saber que há certas coisas que não se diz impunemente.

A falsa revolta é apenas mais uma arma daqueles que querem continuar com as exclusões de sempre.

VLADIMIR SAFATLE escreve às terças-feiras nesta coluna.

Aniversário da pandemia!

  Brasil. Pandemia. Vai fazer um ano... um ano de isolamento. Um ano de crianças sem escola, um ano de homeoffice . Um ano agradecendo que n...