quarta-feira, 29 de abril de 2020

Conformismo.


“A nossa indignação é uma mosca sem asas, não ultrapassa a janela de nossas casas... indigna nação”

A cada dia cavamos mais fundo o poço. A insanidade é tanta que perdemos os parâmetros, as referências... como povo, já não agimos. Já não associamos coisas básicas, como escolhas e consequências, causas e efeitos. Estamos conformados. Com a loucura, com a falta de sentido. Com a doença. Com as mortes.

Se sairmos mais às ruas, adoeceremos mais. Morreremos mais, muito mais. O Presidente mandou as pessoas saírem as ruas. Estamos morrendo mais. Mas ele acha que não tem nada com isso, não faz milagres (apesar de ser “Messias”).

Na Itália, país meio culturalmente desorganizado (como o nosso), quando começaram a morrer mais pessoas, o Estado as mandou ficar em casa e passou a multar quem saísse. No Brasil, morre-se. O Estado não tem nada com isso. As pessoas precisam trabalhar, a economia não pode parar. Mas cada um é dono de si, saiu porque quis, morreu por “azar”. E a gente engole... “é, isso, morreu por azar, coitado... tomara que eu tenha mais sorte...”. Conformados.

Os filhotes do Insano estão sendo investigados por crimes (que inclusive o colocaram e o mantém lá, no poder), e o que ele faz? Nomeia os amigos de seus filhos para os cargos de Ministro da Justiça e Diretor da Polícia Federal. Se isso fosse um filme, seria um filme trash. Mas mesmo para um filme trash, nós reclamaríamos da péssima qualidade do roteiro: que pessoas aceitariam tamanha insanidade? Óbvio que isso nunca aconteceria na vida real.

Brasil 2020: a vida real é pior que um roteiro ruim de um filme trash.

E a gente nem muda o canal, nem desliga a TV: seguimos assistindo pra ver se o poço tem fundo, conformados, rezando pra dar sorte e não morrer de azar...

quarta-feira, 22 de abril de 2020

Reciclagem textual

Em 21 de maio de 2010 eu escrevi o texto abaixo:

Teoria x Prática - I
O mundo e o "mundo".

O mundo é o que existe mesmo, e é o que realmente é.
É a verdade concreta, sem juízo algum de valor, sem preocupação alguma com qualquer coisa que seja.

Do mundo, foi feito o "mundo". Tudo que vemos, sabemos, do que falamos, é só sobre o "mundo". Do mundo fizemos o "mundo", mas ao mundo nunca temos real acesso.

Sobre o "mundo" criamos o conhecimento. É ele que pensamos conhecer, quando pensamos sobre o que deve ser real. Sobre ele, criamos toda as nossas teorias. Testamos nossas teorias e achamos conhecer o mundo. Mas isso nunca será possível.

O mundo é um só e simplesmente É.

O "mundo" é tantos quantas são as coisas que pensamos e falamos sobre ele. Tudo é interpretação. E, sendo interpretação, é conteúdo mental, e está na cabeça de quem interpreta.

O problema é que os homens se esquecem disso. Confundem o "mundo" com o mundo. Confundem interpretações com saberes reais (que não existem).
E saem por aí, empuleirados em suas idéias, discutindo sobre o MUNDO. 'O mundo é capitalista', 'o mundo é egoísta', 'o mundo está errado', 'o mundo deve progredir'. 'O mundo é machista, o mundo é racista, o mundo é preconceituoso'.

Não, o mundo é, e ele nunca está certo nem errado: ele é, e só.

O "mundo" capitalista, egoísta, errado, atrasado, machista, racista, preconceituoso é um dos "mundos", pensado e construído por alguns dos homens. Pensar que esse "mundo" é o mundo nos impede de dizer: chega desse "mundo", vamos fazer outro!

Eu ando bem cansada do "mundo"... planejo uma reforma grandiosa, com direito a várias implosões e explosões nas cabeças das pessoas... me acompanha?

....

Fofo, né?
Eu era mais e era menos otimista com 30 anos, em 2010. Eu não era mãe, e o presidente era o Lula.
Dava pra ser mais e menos otimista então. O Corona já matou quase 3.000 pessoas no Brasil, com quase 44.000 casos confirmados (no mundo, mais de 182 mil mortes, e mais de 2,6 milhões de casos confirmados), tudo subnotificado.
Além de uma pandemia mundial, enfrentamos um governo lunático, que desacredita da ciência e dos fatos enquanto prega ideologias fascistas, machistas, racistas e preconceituosas. Mas não, isso não é mais apenas interpretação. Estou revendo meus conceitos, e mesmo não havendo A verdade, existem coisas mais verdadeiras do que outras. Nosso presidente é um criminoso estúpido hermético a qualquer bom senso ou bondade. Um Messias Vilão, um mito do mal.
Em 2010 eu não ainda conhecia Lacan, então falava do Real do mundo sem chama-lo de Real. O Corona é real. O "mundo" não. Cobrimos o mundo com nosso imaginário e o explicamos e debatemos no simbólico, mas ele sempre nos escapa (mesmo que não totalmente - alguma coisa a gente captura e vê) - afinal, mesmo com lentes de uma cor, digamos vermelha, posso distinguir formas (ainda que perca tonalidades e texturas).

Mas olha isso: em 2010 eu estava cansada do mundo. E planejava uma reforma grandiosa. O que planejo hoje? O que você planeja?

Quero sobreviver ao Corona e quero não perder ninguém.
Quero que o presidente se desintegre (real ou simbolicamente).
Quero que emerja uma nova mentalidade mundial mais humana e menos gananciosa.
Quero uma casa no campo e uma vida mais equilibrada.
E quero também um "mundo" bem menos capitalista, egoísta, errado, atrasado, machista, racista, preconceituoso.

quinta-feira, 16 de abril de 2020

Eterno retorno?

Poucas coisas me afligem mais do que me sentir amarrada em um lugar ou momento.
Lembro de como me afetou, de uma forma até hoje não totalmente processada, mesmo após vários anos, ler Nietzsche falando do eterno retorno. Trago aqui, para facilitar perceber o incômodo:

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O mais pesado dos pesos. — E se um dia ou uma noite um demônio se esgueirasse em tua mais solitária solidão e te dissesse: “Esta vida, assim como tu vives agora e como a viveste, terás de vivê-la ainda uma vez e ainda inúmeras vezes; e não haverá nela nada de novo, cada dor e cada prazer e cada pensamento e suspiro e tudo o que há de indivisivelmente pequeno e de grande em tua vida há de te retornar, e tudo na mesma ordem e sequência (...)”. Não te lançarias ao chão e rangerias os dentes e amaldiçoarias o demônio que te falasse assim? Ou viveste alguma vez um instante descomunal, em que lhe responderias: “Tu és um deus, e nunca ouvi nada mais divino!” Se esse pensamento adquirisse poder sobre ti, assim como tu és, ele te transformaria e talvez te triturasse; a pergunta, diante de tudo e de cada coisa: “Quero isto ainda uma vez e ainda inúmeras vezes?” pesaria como o mais pesado dos pesos sobre o teu agir!
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Forte, né? Minha vida é ótima, mas não seria divino ter de reviver, sem novidade, cada dor e cada prazer e cada pensamento e suspiro...

Mas heis que vivemos esse momento histórico terrível que é o atravessamento de uma pandemia mundial. Estamos em isolamento social (não total, até porque o presidente é contrário, pois prejudica a economia - morrer pode, deixar de trabalhar não), presos em casa.

Eu, que não tolero bem a sensação de estar presa, cá estou, numa quarentena. Presa no espaço sagrado que é meu lar, com as pessoas que amo tanto, mas presa sempre nos mesmos metros quadrados, entre as mesmas paredes. Tive dificuldade de saber que dia era hoje. Dia da semana (que costuma significar algo). Minha quarentena começou em 16 de março, hoje completa seu primeiro mês.

Presa em casa, não é só o espaço que é sempre o mesmo. As atividades de manutenção também são repetitivas. Fazer comida, comer, cozinha em caos, arrumar a cozinha. O chão se suja milagrosamente todo dia, mesmo sem praticamente haver entradas e saídas. Lavar roupas, pendurar roupas, despendurar roupas, guardar roupas, usar roupas (poderíamos fazer uma quarentena naturista??). Percebo o impacto da falta de mudança do ambiente, como um apertamento da subjetividade, da imaginação, do pensamento, de mim. Decidi escrever mais, pois isso me tira da repetição (cada texto é um texto, e cada momento, dentro de mim, é um momento único). Escrever registra minhas oscilações enormes de ânimo.

Resolvi também retornar a este Blog (e parar de usar um que seria coletivo, mas que hoje é casa abandonada onde só eu perambulava). E ontem resolvi reler coisas antigas minhas aqui.

Como já havia sentido em outras ocasiões, reler o que escrevi foi bom e foi ruim. Gostei de me rever mais jovem, percebo o que cresci e como eu já era tão eu. Mas uma coisa foi particularmente muito ruim... e por isso o eterno retorno me pareceu ainda mais de mau gosto. Achei mais de um texto falando do Bossal, chamando-o inclusive de primo-irmão do demo. Ele já estava lá, causando angústia e sofrimento. Hoje é o chefe de estado que acabou de demitir seu Ministro da Saúde, no início da pior parte de uma pandemia mundial, por divergências quanto ao isolamento e por inveja/ciúme, porque o Ministro estava com aprovação muuuuuuuuuito maior que a dele. Como a madrasta da Branca de Neve, não tolera alguém de seu desgoverno ser mais amado do que ele (o que é bizarro, pois tem se esforçado bastante para ser odiado, mas enfim...). Não, nem é ser amado ou odiado. Quer que só falem dele, só ele apareça, que todos se curvem a sua alta patente de coronel capitão de meia dúzia de estrelinhas que fica atrás da mesa com o cú na mão.

Não, eu não toparia viver isso de novo. Sai pra lá, demônio do eterno retorno... vá de retro e leve contigo esse seu parceiro...

quarta-feira, 15 de abril de 2020

Quarentena - dia 31

Ninguém consegue manter uma emoção aguda por muito tempo. Nem raiva, nem tristeza, nem pânico.
O cenário tem piorado lentamente e imperceptivelmente. Os números sobem, mas ao nosso redor parece que nada mudou, que o tsunami deve ter desistido, e mesmo sabendo que só tende a piorar, a gente não vê nada, e fica tentado a sair na rua. A buscar um pouco de normalidade. Não dá pra permanecer tenso agudamente, vai se alongando no tempo e virando uma sensação de fundo... a gente sente um medinho, um desânimo parecido com o fim da tarde do domingo (independente do dia e hora em que estamos).
Estamos presos, mas estamos em casa, no nosso confortável lar, e isso é e não é uma prisão. Podemos sair, só não convém. Sair é perigoso por conta de algo que não se vê.

Algumas coisas doem mais. Tipo a saudade de quem está logo ali mas não podemos ver pessoalmente, bater papo, dar um abraço.

Domingo foi Páscoa, dia onde normalmente se compartilha bacalhoada e chocolate com a família. Nós aqui não temos muitos rituais e cerimônias (na verdade, só comemoramos de fato os aniversários), mas meus pais cultuam datas, e quiseram trazer ovos de Páscoa pras meninas. Malu é chocólatra, Elis não gosta (nem quer provar), mas desde minha infância me lembro como adorava os ovos que vinham com brinquedos, onde o chocolate pouco importava. Eles vieram, mas nem subiram. Vieram, de máscaras, e eu desci pra pegar os ovos, enquanto as meninas foram até a janela dar oi pra eles. Moramos no terceiro andar, e quando cheguei no pilotis minha mãe estava chorando, de máscara. Não pude abraça-la, como sempre fiz ao vê-la chorar. Falei “tá tudo bem, mãe, isso vai passar...”. Me segurei pra não chorar, tentei sorrir, peguei os ovos, subi e fizemos uma festa com as crianças, que sentem saudade e pedem os avós, mas que estão melhores do que nós. Senti muita raiva do vírus. Raiva da circunstância, de nossa insignificância frente a um ser invisível que nem vivo é, nem sei se é um ser. Essa coisa.

Em retrospectiva, talvez entendamos. Talvez. Talvez passe e acabe de uma hora pra outra, como um sonho ruim, e a gente acorde, faça sinal da cruz (pra quem for de sinal da cruz) e toque a vida. Talvez demore muito. Meses. E a gente esqueça a despreocupação com que muitos de nós vivíamos. Talvez eu perca alguém que amo (bate na madeira, pra quem é de bater na madeira), talvez algum conhecido, talvez ninguém. Mas pode ser que a gente não encontre sentido nenhum, e tenhamos que decidir (não como escolha, mas como consequência natural do que cada um de nós é) entre nos conformarmos ou nos modificarmos, ou nos rebelarmos, ou nos matarmos, ou nos amarmos, ou morrermos todos e fim. Sei lá.

Aqui em casa está tudo bem e todos sãos. Bj.

trinta e um - três - vinte

Trinta e um de março de dois mil e vinte. Terça-feira. Décimo sexto dia de quarentena, isolamento, clausura. De dias úteis, décimo segundo.

Causa da quarenta, COVID dezenove. No Brasil, hoje, às seis horas da manhã, quatro mil seiscentos e sessenta e um casos confirmados de infecção, cento e sessenta e cinco mortos.

Números. Sempre os amei. Nos momentos incertos e históricos como o que vivemos, eles são a estabilidade, a ordem, um calmante. Mesmo crescentes, eles são exatos. Somos mais de sete bilhões de humanos hoje. Há séculos vivemos por aqui, destruindo, construindo, adoecendo, nos curando, morrendo morrendo morrendo e seguindo por aqui, vivendo e fazendo arte, vivendo e fazendo guerras, sofrendo, dançando, amando, xingando, trabalhando. Milênios. Dois mil e vinte anos depois de Cristo, em nosso calendário católico.

As crianças estão em casa desde antes, desde o dia doze de março, e portando há catorze dias úteis, sem aula. São duas as crianças, e elas brincam e brigam o tempo todo, coisa de criança. Sabem do Coronavírus, abstratamente. Sentem falta dos avós, dos primos, dos amiguinhos, do parquinho, do clube. Mas estão com pai e mãe e vendo mais desenhos animados, estão bem.

Para além dos números, se saio deles, se foco nas palavras “mortos”, “infectados”, “dificuldade respiratória”, saindo dos números me entristeço mais. Já tive asmas e é só pensar em respirar mal que respiro mal, assim como falar em piolhos faz a cabeça coçar. Memórias do corpo.

Para os números, a pergunta é “quantos mais?”. Para o calendário, “até quando? Quando voltaremos ‘ao normal’?”. Mas para além do que é estável, exato, lá onde a angústia aparece, as perguntas se tornam mais complexas: “Quem morrerá? Como sairemos dessa situação, como seremos após tudo isso? Conseguiremos andar tão despreocupados quanto éramos até anteontem em lavar as mãos, sentar no chão, abraçar as pessoas?”.

Para todas as perguntas, a resposta está para além. Depois da travessia. Aguardando os sobreviventes.

Sobrevivamos.

puxado de publicação no https://decirblog.wordpress.com/

Aniversário da pandemia!

  Brasil. Pandemia. Vai fazer um ano... um ano de isolamento. Um ano de crianças sem escola, um ano de homeoffice . Um ano agradecendo que n...