segunda-feira, 29 de junho de 2020

É só um pedaço da dor, mas dói...

Eu sinto sua dor, negra. 
Não toda, mas parte dela. 
Eu a olho nos olhos, e me dói, muito. 
Mas minha dor é um relance, um momento, um fragmento minúsculo da tua. 
Eu sei, mesmo que me doa, eu não posso alcançar o que você sente... 
É sua realidade, não a minha. 

A dor que me bateu te bate, e é todo dia... 
Não, não é justo, não mesmo. 
E eu sei que eu, branca, não sei, não tenho como saber. 
Estou ciente de que sua vida é mais difícil, e isso não é justo. 

Você é forte. 
Não quero romantizar isso, é uma merda ter de ser forte. 
Vejo de fora e espero que você se orgulhe da sua força. 
Você pode me mandar à merda: Ter de ser forte não foi uma escolha tua, ninguém te deu opção. 
Mundo injusto... 

Você é mãe, como eu. 
Tenho filhas e temo por elas, mulheres. 
A dor da mulher eu conheço, o sofrimento do machismo (mas mesmo aqui reconheço os privilégios que me cercam – acho que a maior parte das mulheres sofre mais do que eu). 
Você teme por seus filhos, eu sei. 
Vejo os jornais e penso que seu temor é tão maior que o meu... e não é justo. 
Seus filhos, negros, e eu tenho vergonha de viver num mundo onde isso acrescenta mais temores no coração de uma mãe... 
Suas filhas, negras, e te assombra um olhar que vem de fora, e te tira a paz, porque você quer o melhor para elas, o melhor para todos os seus filhos, e essa porcaria de mundo pode tratá-los mal... porque são negros... 

Sinto ódio dessa injustiça. Muito ódio. 
E sei que meu ódio é um fragmento, um relance, uma lasquinha do que deve ser o teu. 
Você tem toda a razão. 
O mundo te dá isso, a razão. 
E você preferia que não desse, eu sei. 
Você trocaria fácil essa “permissão” pra sentir dor, e medo, e ódio, por paz. Por justiça. Por igualdade. Trocaria sorrindo, é melhor ser feliz que ter razão, certo? 

Eu queria que te dessem essa opção. 
Eu quero que o mundo trate melhor seus filhos, suas filhas, você, seus pais, seus ancestrais. 
Eu quero que o mundo te peça desculpas de joelhos. 
Que te cubra de rosas brancas e te recompense por toda a injustiça, o medo, a raiva e a dor. 
Que você só seja forte quando quiser, e tenha opção de poder ser frágil sem que ninguém lhe magoe por isso. 

Receba minha empatia com todo o amor que consigo dar. 
Estou contigo pra desentortar o mundo. 
Minhas filhas e seus/suas filh@s merecem um mundo menos torto. E você também.

quinta-feira, 18 de junho de 2020

PANDEMIA

Em 2020 a PANDEMIA se espalhou pelo mundo.

O jeito mais fácil de acompanhar seu movimento é o monitoramento geográfico e numérico: em que continentes, países, estados, municípios, bairros o vírus chegou; quantas pessoas contaminadas (testadas?), quantas internadas, quantas recuperadas, quantas morreram. Mas acaba que esse aspecto mais "visível" é mais abstrato do que tudo que não vemos.

Não vemos nossos horizontes se encolhendo, mas eles se encolhem a cada dia que não saímos de casa (e não vemos outras pessoas, outros cenários, outros climas, outras situações; não temos diálogos imprevisíveis, improvisamos menos, temos menos chance de expandir horizontes e sermos criativos). Convivemos menos agora com quem nos é diferente, e mais com quem parece conosco, com quem temos afinidade (por laço ou por assunto). A cada dia fazemos coisas mais e mais parecidas, reforçamos as mesmas sinapses e redes neurais, e vamos nos reduzindo...

Imagem: Mural do artista Eduardo Kobra

Sentimos, nos espreitando sem mostrar a cara, a angústia que vem de não sabermos o dia de amanhã. Nem quando esse amanhã chega, nem como ele será. Mesmo o que conseguimos projetar (que estaremos mais pobres, que a desigualdade vai aumentar, que a violência deve aumentar, que muitos de nós que continuaremos por aqui perderão entes queridos e estaremos de coração partido), a gente não consegue, hoje, saber em que dose, o quanto, e como nos sentiremos lá.

Nem sei se sabemos como estamos nos sentindo agora...

Ontem conversei com um amigo, e ele me disse "já estive melhor, hoje ando bem deprimido, cansado... exausto. Minha filha de 10 anos passou a ir pra minha cama toda noite."
E emendou com um "Mas está tudo bem, graças a Deus. Não tem como reclamar.".

Cara, não está tudo bem. Tem como reclamar sim. Não podemos, além de tudo o que nos oprime silenciosamente hoje nos impormos mais essa opressão. Isso é violência simbólica, e não ajuda a elaborar, a digerir, a processar e a sobreviver a essa coisa bizarra que estamos vivendo.
Podia estar pior? Podia, é fato, está pior pra muita gente. Mas também podia estar melhor, né? Podia estar bem melhor.

Poderíamos ter um governo que governasse e que nos desse um pouco de segurança (emocional, por assumir o comando, por estar coordenadamente fazendo o possível para reduzir nosso sofrimento). Poderíamos ter mais respiradores e hospitais bem equipados. Poderíamos ter políticas públicas efetivas, orientação e incentivos para fazermos uma quarentena decente.

Para além dos milhares de mortos, para além de evitar mais mortes, além de achar a vacina... como cuidamos de nossas humanidades? Dos que sobreviverem? Como cuidamos de manter viva a esperança necessária para reconstruir o que for preciso, como continuamos cultivando a alegria (não para fugir do necessário luto, mas para poder, depois dele, sacudir a poeira e dar a volta por cima)?

O sol há de brilhar mais uma vez... estejamos bem, cuidemos de nossos queridos e do que há de mais sensível em nós.

quarta-feira, 10 de junho de 2020

Brasil 2020 - precisamos de mais ciências humanas

Eu amo o Brasil. De verdade.
A língua, a música, as praias.
A simpatia, o abraço, o calor humano.

Mas tá foda.
Deixamos um governo de extrema direita se eleger, e eles querem pôr tudo abaixo. Tudo.
O povo, as florestas, as alegrias, as diferenças, a leveza, a arte, o SUS, a história, a ciência.
É tão tão tão absurdo que não tem palavras pra esse nível superlativo de absurdidade que quero declarar.

Enquanto morremos aos milhares de Coronavírus, estamos sem Ministro da Saúde (tem um militar interino lá, pau mandado do chefe que é anti-ciência e pró-morte), e discutimos mais o que se pode investigar da família do homi do que como poderíamos diminuir o número de infectados e mortos.

Mas não é isso que me agonia hoje. É porque nesse processo de retrocesso que estamos vivendo, a área da educação é uma das mais afetadas. Para além do ministro, que é uma coisa bisonha, temos um projeto político totalmente ideológico que se propõe a acabar com uma ideologia que só ele enxerga, e que quer que eduquemos nossas crianças sem nada de pensamento crítico, filosofia, sociologia, antropologia, e com uma história editada e rasa. Não que nossa educação fosse modelo antes deles, não era (ou não teriam sequer sido eleitos - falhamos desde sempre), só que agora é pior, porque é explícito, declarado e desejado: criemos ignorantes.

O que me agonia hoje tem a ver com o racismo que fingimos não ver. Não sou negra, e me sinto mais confortável de falar contra o machismo (que também fingimos não ver), mas é que o mundo, e particularmente os EUA, está tendo manifestações intensas e até violentas por conta de um assassinato de um homem negro pela polícia (George Floyd foi asfixiado por um policial que por longos minutos apoiou o joelho sobre seu pescoço, estando ele já imobilizado). Eles estão quebrando tudo, lá, na Europa. Aqui, quase nada.

Nossos negros sofrem diariamente com um racismo mal disfarçado, a não ser na fala (dizemos que não somos racistas, e que o povo brasileiro é uma grande mistura, que os negros aqui não são tão negros porque os brancos tb não são tão brancos e blablablá). No concreto, no dia a dia, nos olhares enviesados e desconfiados, no tratamento diferenciado, nos xingamentos, nas oportunidades negadas, eles sofrem racismo TODOS OS DIAS. Mas não quebram tudo. Somos um povo dócil?

Descendentes de africanos escravizados, açoitados, assassinados, maltratados, os negros sofreram outras violências, igualmente terríveis e talvez ainda mais duradouras: a violência simbólica. Negamos sua história, negamos sua luta, negamos sua revolta, negamos a crueldade histórica dos brancos para com eles.

Assista esse vídeo do Porta dos Fundos pra entender mais o que tento dizer aqui: https://www.youtube.com/watch?v=HiBUuOXqBYM

E leia esse texto, que explica bem melhor do que eu seria capaz:
https://quadronegro.blogfolha.uol.com.br/2020/05/29/porque-os-negros-brasileiros-nao-se-revoltam-como-os-americanos/

Porquê os negros brasileiros não se revoltam como os americanos?
NONE MAY 29, 2020


Se você quer uma resposta simples, procure na pergunta. Brasileiro é brasileiro, americano é americano.

Mas acontece que negros de outros países também têm reagido às violências impostas a seu povo. Dos subúrbios de Paris ao bairro de Soweto, do hemisfério norte ao hemisfério sul, negros têm reagido.

Veja bem, a palavra violência ainda não entrou aqui.

Porque o mistério não é nem saber o motivo pelo qual os negros do Rio de Janeiro, por exemplo, não incendiaram a cidade inteira quando foi assassinada a menina Agatha, em setembro do ano passado.

O mistério não é saber porque os negros não reagiram de forma violenta.

O verdadeiro mistério é saber porque os negros sequer reagiram.

Voltemos à frase “acontece que negros de outros países também têm reagido às violências impostas a seu povo”. Taí. Mistério resolvido.

“Seu povo”.

O negro brasileiro é um negro único no mundo porque não se vê como um povo.

Não foi educado para se ver como um povo.

Não é educado para se ver como um povo.

O negro brasileiro foi programado para sequer se ver como negro.

Em 1835, na Bahia, os negros escravos islamitas planejaram um levante, a “Revolta dos Malês”. Tomar a capital Salvador matando quem estivesse na frente.

Educação. Como o judaísmo, o islamismo é uma fonte de educação fundamental (civilizou a Europa) e, principalmente, ensina um povo a se ver como um povo.

O negro brasileiro foi educado para cair no conto do vigário, na versão criada pela elite de que somos “um povo feito por muitos povos”.

Quem se alinha a esse estelionato demográfico, quem pensa que somos mesmo “um povo feito por muitos povos” são os brasileiros que pertecem às classes e raças privilegiadas.

O truque de convencer negros brasileiros de que somos uma grande e bela família diversa, tupis, cafuzos, loiros, negros. E, por isso, ninguém é tupi, nem cafuzo, nem loiro, nem negro. Somos a soma. Logo, negro, no Brasil, posto que aqui tentam nos conhecer de que não há raças, e sim amálgamas, não encontra nem a categoria “negro” para se ver.

E não se vendo, some.

Se em Londres a polícia assassinar uma menina Síria, a comunidade Síria, que se vê como povo, irá botar pra quebrar. Se uma menina rohingyas é estuprada num beco de Cox’s Bazar, na fronteira de Mianmar com Bangladesh, o povo rohingyas irá botar pra quebrar.

No Brasil, se uma menina da etnia negra é baleada nas costas o que vemos são dois meses de noticiários e hashtags.

O truque da deseducação do negro para não se entender como negro e, por consequência, não se entender como povo, como acontece com rohingyas, sírios, judeus e muçulmanos é tão perverso no Brasil que nossa identificação como povo se dá por vias de mercado.

Dispositivos que nos filiam, servindo de cortina de fumaça para vermos a que povo de fato pertencemos.

Exemplo 1 : Se um palmeirense é atacado por corintianos em uma estação de metro, “o povo corintiano” irá jurar vingança. Provavelmente, no confronto, vai gente preta matar gente preta.

Exemplo 2: Se um bandido de uma facção X for assassinado por outro, da facção Y, durante a tomada de uma boca de fumo, “O povo da facção X”, jurará vingança. E unidos, provavelmente veremos mais negros matando negros.

Fora do Brasil, negros são educados, desde criança, a se verem como negros. E todos os movimentos negros norte-americanos que partiram para o confronto, como os Panteras Negras, não o fizeram sem antes muitos estudar, ler livros sobre o assunto, produzir intelectuais robustos que os fizessem escapar da armadilha da “educação ocidental”.

O livro norte-americano “The Miseducation of the Negro”, “A deseducação do negro”, de Carter Woodson, escrito em 1933, é um dos faróis que não tivemos aqui. Apesar de aqui dançarmos até hoje as músicas do álbum “The Miseducation of Lauryn Hill”, onde a cantora fez questão de, na famosa capa do disco, ter imitado o design da capa do livro de 1933.

Seria como se o primeiro disco de Anita trouxesse na capa o geógrafo brasileiro negro Milton Santos.

Mas Anitta não tem culpa de nada. Ela, e você, não leram a fundamental obra de Carter Woodson. E ainda vêm dando sinais de despertar político. Não tem culpa. Nem ela, nem nenhum outro negro que não sabe que é negro, ou que não queria saber que é negro porque é algo que no Brasil dá trabalho, ou não se vê como parte de um povo que é antagonizado e excluído o tempo inteiro pelas etnias que detém o poder no país.

Nós negros brasileiros, fomos todos educados longe de nossa própria cultura e tradição e ligados às franjas da cultura do povo branco.

Todos os povos são lindos. Os brancos, os sírios, os rhohingyas, os judeus. Lindos todos. E todos se vêem cada um como um povo distinto. E não há pecado algum nisso.

Pelo contrário, ver-se como povo é a coisa mais linda que pode acontecer a um.

Como foi publicado aqui, na coluna de ontem, o que o povo preto quer não é nada que não seja dado a todos os outros.

O direito de respirar.

E, no caso do povo preto brasileiro, o direito de ver.

De se ver.

Autor Carter G. Woodson
Editora Medu Neter


Precisamos separar para enxergar: não somos um povo homogêneo. Temos várias histórias, várias culturas. Isso tem de ser estudado, respeitado, honrado, discutido. As minorias (mesmo que sejam maiores em número) não conquistarão espaços enquanto fingirmos que não há desigualdade, que está tudo bem.

Não tá tudo bem, caramba.

Tá foda.

quinta-feira, 4 de junho de 2020

Todo ódio é ódio igual?

Todo ódio é ódio igual?
Não.
Meu ódio não é igual ao deles.
Por uns instantes me senti mal, e má, e como eles, pequena, raivosa.
Mas não, não é o mesmo ódio.

O ódio deles veio antes. O ódio deles quer importunar a paz, o amor, a leveza. O ódio deles quer destruir, brigar, e se alegra com a guerra. O ódio deles ama a violência, ama, a ponto de conseguir ser violento com quem está quieto. Eles são os que começam a briga, eles são o que xingam antes, e revidam ao xingamento que veio em resposta com um tapa, um soco e um chute.

Meu ódio não é assim. Meu ódio é reação. Tem desejo de vingança, e me doeu ver como estou longe de dar a outra face. Não, não evoluí a esse ponto. Se eu não era quem estava quieta, eu era quem assistia. Assisti a várias covardias. Ofensas a quem estava quieto. O ódio deles, surgindo do centro de seus obscuros e purulentos vazios, sendo atirado a tantos... índios, negros, mulheres, pessoas de esquerda, florestas, ciência, razão... De graça. Para machucar, criar dor, destruir destruir destruir. Eu vi. Muitos viram. Demoramos a acreditar, talvez até tenhamos achado que logo iria passar, ou que alguém faria algo para impedir. Mas não, não pararam. Não foram interditados. E meu ódio veio com força, e cresce agora a cada dia.

Quando ele, meu ódio, inflama, me sinto má: eu seria capaz de atos bem violentos. Como eles são. Mas não, não sou como eles. Não sou um deles. Meu ódio é ódio, mas não é ódio igual.
Porque o ódio que revida uma injustiça não é o ódio começou uma injustiça, que a cometeu. Porque o ódio contra o ódio não é o ódio contra quem estava quieto. Meu ódio nasce da indignação, e não de um vazio na alma. Meu ódio me faz humana, o deles os faz bandidos, assassinos, agressores, genocidas.

Um pedaço de mim tem dó deles: é muito desamor ser capaz de odiar assim, tão gratuitamente, tanta coisa e tanta gente. Pobres diabos... O coração e meio mole, mas a razão me traz de volta: se o desamor deles virasse só sofrimento, virasse pedido de ajuda, virasse arte ou poesia, aí caberia toda a compaixão do mundo. Mas se o desamor deles vira ódio, e destrói, e agride, e machuca, é meu ódio quem entra em cena, puro e justificado, belo e justo, necessário e focado.

Fascistas, não passarão.

Aniversário da pandemia!

  Brasil. Pandemia. Vai fazer um ano... um ano de isolamento. Um ano de crianças sem escola, um ano de homeoffice . Um ano agradecendo que n...