quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

Hipocrisia cultural

"Quem é obrigado a reagir continuamente segundo preceitos que não são expressão de seus pendores instintuais vive acima de seus meios, psicologicamente falando, e pode objetivamente ser designado como um hipócrita, esteja ele consciente ou não dessa discrepância. É inegável que nossa atual civilização favorece de maneira extraordinária a produção de tal espécie de hipocrisia. Podemos ousar afirmar que ela está edificada sobre essa hipocrisia, e que teria que admitir profundas mudanças, caso as pessoas se propusessem viver conforme a verdade psicológica. Portanto, existem muito mais hipócritas culturais do que homens realmente civilizados, podendo-se mesmo considerar o ponto de vista de que um certo grau de hipocrisia cultural seja indispensável para a manutenção da cultura, porque a aptidão cultural já estabelecida nos homens de hoje talvez não bastasse para essa realização. Por outro lado, a manutenção da cultura, ainda que sobre uma base tão duvidosa, oferece a perspectiva de preparar o caminho, em cada nova geração, para uma transformação instintual mais ampla, portadora de uma cultura melhor" - (p.223-4).

Hoje, visitando um blog dos que sigo, encontrei um post com várias citações do Freud. Adoro Freud. Como todo mundo, ele também falou umas abobrinhas, mas ele foi um gênio que foi capaz de pensar totalmente fora da caixinha, ainda mais para a época em que vivia. A Psicanálise fundada por ele continua crescendo e se transformando, firme e forte, e a análise é uma viagem fantástica pra dentro da própria alma, desafio que pretendo encarar um dia...

Mas voltando à citação acima, ela tem tudo a ver com "O mal estar na civilização", que também foi traduzido como "O mal estar na cultura". Outra citação do mesmo post ajuda a explicar melhor a ideia:

"A civilização foi adquirida pela renúncia à satisfação instintual, e exige de cada "recém-chegado" essa mesma renúncia. Durante a vida individual há uma contínua transformação de coação externa em coação interna. As influências culturais levam a que tendências egoístas cada vez mais se convertam em altruístas, sociais, pela adjunção de elementos eróticos. Enfim, é lícito supor que toda coação interna que se faz notar no desenvolvimento do ser humano era originalmente, ou seja, na história da humanidade, apenas coação externa"

Em resumo, o preço de se viver em sociedade (ou numa dada cultura) é suprimir (ou renunciar) a alguns intintos pessoais. Isso gera sofrimento ao indivíduo, mas favorece a sua sobrevivência, por ser parte de um grupo. A coação aos desejos e instintos se inicia externamente (são os pais e o resto do mundo nos dizendo 'não pode') até que introjetamos (olha o superego aí geeeeente!) e os 'não pode' passam a viver dentro de nossas cabeças.

Alguns indivíduos, "mais civilizados", deixam de ter certos instintos e desejos socialmente proibidos. Esses conseguiram a transformação instintual, estão um pouco mais longe de seu lado "animal". Mas o que Freud afirma na primeira citação deste post, e que acho que ninguém ousaria duvidar, é que a grande maior parte das pessoas que vivem em sociedades ou civilizações são "hipócritas culturais".
Acho que devo escrever na primeira pessoa do plural: nós somos hipócritas culturais. Nós sabemos as regras da nossa sociedade, conhecemos os 'não pode', mas só os seguimos por achar que devemos (e mesmo assim várias vezes nós os burlamos, por baixo dos panos, com a autorização do álcool, ou de outro entorpecente, ou da coletividade, ou da fantasia de carnaval, ou ...). Civilizados de verdade seríamos se nem sequer desejássemos o que não devemos desejar.

Nesse carnaval um irmão quis dar de presente de aniversário a outro uma coisa diferente. Planejou um churrasco, convidou algumas pessoas vizinhas, comprou cordas e lacres e, no meio da festa, os dois irmãos e mais 8 homens, vestidos com máscaras de carnaval, estupraram coletivamente as 5 mulheres presentes na festa. Uma delas os reconheceu, duas delas acabaram mortas.

Faltou hipocrisia? Ou sobrou?

Mesmo sendo "da cabeça pra fora", os valores e regras da sociedade precisam ser respeitados por seus indivíduos, ou não é possível considerar a vida em sociedade...

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